Por Plínio Nastari / Broadcast Agro
Desde julho de 2002 o Brasil adota a mistura obrigatória de 25% de etanol anidro na gasolina, e, desde março de 2015, adota 27% de anidro na gasolina comum e de 25% na gasolina premium, que é destinada aos carros importados. Este tem sido um dos pilares mais importantes da política de biocombustíveis. Desde 1978, o Brasil adota misturas de etanol acima de 20%, que evoluíram gradualmente até o nível atual.
Misturas elevadas são denominadas mid-level blends nos Estados Unidos e têm sido apontadas como o objetivo de várias montadoras em declarações prestadas ao congresso norte-americano. Essas misturas permitem a construção de motores menores, em alguns casos equipados com tecnologia turbo, que, além de serem mais eficientes, produzem menores emissões veiculares. O elevado teor de octanagem do etanol de 116 AKI (anti-knocking index), muito superior ao da gasolina média, de 87 AKI, tem permitido ao Brasil usar gasolinas base de mistura mais pobres e mais baratas, uma economia que raramente é reconhecida nas análises realizadas sobre o tema. Mas também permitiu ao Brasil ser pioneiro na eliminação do uso do venenoso chumbo tetra-etila, usado para elevar a octanagem, mas que também trazia sérios danos à saúde, como o saturnismo e a contaminação cerebral, principalmente em crianças.
Por sua elevada octanagem, o etanol também permite a substituição de aromáticos cancerígenos na composição da gasolina. É por esse motivo que o etanol não substitui a gasolina e sim o tolueno, um dos principais compostos do grupo BTX – benzeno, tolueno, xileno. O tolueno, assim como outros aromáticos, tem um preço de mercado de 25% a 45% superior ao preço médio da gasolina, que é um coquetel de hidrocarbonetos.
É por esse motivo que o etanol deveria valer o preço do tolueno e não o da gasolina. Além de substituir aromáticos, a combustão de etanol não gera material particulado, um dos principais marcadores de qualidade do ar. O material particulado fino com até 2,5 mícrons (MP2.5), é outro elemento danoso à saúde, por ser facilmente absorvido pelos pulmões, entrando na corrente sanguínea. Além de ser poluente, carrega consigo compostos cancerígenos não-queimados, literalmente levando para a corrente sanguínea compostos que trazem enorme dano à saúde.
As 50 cidades mais poluídas do mundo têm concentrações médias de MP2.5 entre 60 e 136 microgramas por metro cúbico de ar, com picos de mais de 1.000 microgramas em algumas épocas do ano. Nesse campo, o Brasil é um laboratório a céu aberto. A região metropolitana de São Paulo, onde 64% da gasolina está sendo substituída pelo etanol anidro misturado à gasolina e pelo hidratado usado pela frota flex, e onde mais de 20 milhões de habitantes utilizam mais de 8,5 milhões de veículos diariamente, tem uma concentração média de apenas 16,2 microgramas por metro cúbico de ar, bem abaixo dos 20 microgramas preconizados como limite aceitável pela OMS. Em tempos de pandemia, que afeta a capacidade respiratória, a qualidade do ar é fator preponderante.
Esses temas vêm à tona pois, na semana passada, o presidente da República mencionou, em uma de suas mensagens gravadas, preocupação com a elevação do preço do etanol que é misturado à gasolina, e comentou que a manutenção da mistura no nível atual seria uma decisão do CNPE, Conselho Nacional de Política Energética. Do ponto de vista institucional, o CNPE é um colegiado de ministros e representantes da sociedade civil que assessora a presidência da República, e cabe na verdade ao presidente a aprovação de suas recomendações.
A gasolina A, sem mistura com etanol, tem preço definido pela Petrobras nas refinarias, atualmente fixado em R$ 2,8257 por litro sem impostos em Paulínia (SP). Há exatamente um ano, o etanol anidro misturado à gasolina tinha preço médio ao produtor de R$ 2,11/litro sem impostos, e, até fevereiro de 2021, se manteve em R$ 2,44/litro. Circunstancialmente, esse preço subiu para R$ 3,83/litro, como reflexo da maior seca do século, que reduziu a moagem de cana de 605,5 milhões de toneladas na safra de 2020, para estimados 530 milhões de toneladas em 2021.
Nesse campo, os produtores têm mostrado compromisso com a manutenção da oferta de anidro. Até 16 de setembro, a produção de açúcar caiu 8,1%, a produção de hidratado caiu 15,5%, e a produção de anidro subiu 26,4% em relação a igual data do ano passado, passando de 6,37 bilhões para 8,05 bilhões de litros. O anidro tem seu preço referenciado ao preço do hidratado, que é usado pela frota flex, e esse último também subiu de R$ 1,86 para R$ 3,29 por litro, resultado da lei da oferta e da procura — não tivesse subido, o seu consumo não teria caído, e correríamos o risco de falta do produto. A elevação de preço é conjuntural e em breve será revertida com a volta à normalidade.
Os estoques de anidro em 1º de setembro nunca foram tão elevados, totalizando 3,27 bilhões de litros, aumento de 24,4% em um ano, e correspondentes a 117 dias de consumo, ante 107 dias nos dois anos anteriores. Uma possível redução na mistura teria efeito de poucos centavos por litro na ponta do consumidor, se é que isso poderia acontecer, já que precisaria ser substituído por compostos de custo mais elevado.
A cerca de um mês da COP-26 em Glasgow, onde o mundo todo se reunirá para discutir medidas urgentes para controlar o aquecimento global, alterar um pilar fundamental de nossas políticas energética e ambiental deve ser ponderado com cuidado, afinal, o êxito do Brasil nessa área é um dos poucos temas em que é considerado de forma indiscutível como referência internacional. Controlar o preço dos combustíveis também foi utilizado como argumento para reduzir a mistura de biodiesel no diesel fóssil de 13% para 10%, na direção contrária à decisão anterior, de elevar gradualmente a sua mistura, até atingir 15% em 2023, mas contrariar o mercado já foi demonstrado muito perigoso e danoso no passado. Projeções indicam que, nos próximos meses, o petróleo poderá navegar entre US$ 80 e US$ 90 por barril e historicamente os biocombustíveis têm sido responsáveis pela redução do preço do combustível aos consumidores, e não o contrário, além da grande economia na importação de combustíveis.
Desestimular esses mercados numa situação conjuntural, quando o setor demonstra um comprometimento vigoroso com o abastecimento, enviaria uma forte mensagem de insegurança e falta de previsibilidade a suas cadeias produtivas, colocando em risco novos investimentos privados na produção e no cumprimento da meta de descarbonização definida pelo próprio CNPE, por meio do RenovaBio. É tudo o que o governo e a sociedade não deveriam pretender que acontecesse neste momento.
* Artigo originalmente publicado no Broadcast Agro